E se essas coisas ascendem e recuam naturalmente, como marés, enquanto o sentido da vida continua sempre o mesmo — só viver e estar com outras pessoas? (“belo mundo, onde você está?”, p. 122)
abri “antes do baile verde” na página em que tinha parado. o próximo conto do livro de lygia fagundes telles tinha o título “venha ver o pôr do sol” e começava assim: ela subiu sem pressa a tortuosa ladeira. me surpreendi, pois era justamente o que eu tinha acabado de fazer! minha casa fica no topo de uma pirambeira impossível de subir com pressa e, antes de começar a leitura, eu tinha descido até a praia para ver o quinto pôr do sol da semana. meu dia não terminou como no conto (ainda bem), mas assim como ricardo, eu tenho feito um esforço ativo para ver os pores do sol.
recentemente, eu completei 28 anos e descobri que estou no meu retorno de saturno — que entrou em peixes no comecinho do ano. meu conhecimento em astrologia é limitado, mas confesso que é interessante ter um fenômeno pra explicar (culpar ou usar de desculpas para) a eterna crise na qual eu sempre acho que estou metida. permacrise foi a palavra de 2022, então talvez o meu estado fisico-emocional dos últimos dez anos seja apenas um reflexo do mundo, e, no fim das contas, acredito mais nisso do que no retorno de saturno. até porque, aparentemente, esse saturno em peixes pode se transformar em coisas boas. por exemplo: consciente ou não da influência do trânsito astrológico na minha vida, há algumas semanas eu tomei uma decisão que me pareceu importante: preciso ter fé em alguma coisa, qualquer coisa.
todo mundo já ouviu uma história assim: a pessoa passou por uma situação desafiadora, ou mesmo ruim, mas reflete de maneira positiva perante o ocorrido, pois ela tem fé em deus. ela acredita que se deus — que escreve certo por linhas tortas — a fez passar por aquela situação é porque ela tinha algo a aprender, por isso agradece.
eu escutei esses relatos a vida inteira. a última vez foi bem recentemente, inclusive, nesse episódio do rádio novelo apresenta. a diferença é que antes eu não dava bola pra elas, enquanto nos últimos dois anos, as histórias têm ficado comigo, ressoando na minha cabeça: e se?
agora, com 28, olho em retrospectiva para os meus vinte anos, um capítulo quase completo, e vejo que eu sigo Triste & Sem Esperança. só que agora não é mais legal, não é mais cool como em 2016, não tô mais bancando esse estado de permacrise. sinto que preciso mudar urgentemente a forma como me relaciono com o mundo e me pergunto: e se a fé realmente for uma resposta? e se for uma saída para o sofrimento emocional?
lembro de um dia emblemático: era pandemia e eu peguei um uber que a viagem seria de 70 minutos. estava chovendo, então o carro tinha as janelas fechadas. já estava me sentindo um pouco sufocada sem o ar circulando direito e ainda estava de pff2. o motorista era um evangélico de esquerda que passou a viagem inteira falando sobre a soma de todas as crises que estávamos enfrentando — sanitária, política, econômica, climática, etc. enquanto ele falava, e eu até compartilhava de algumas visões que ele tinha, a ansiedade foi chegando, primeiro de mansinho e depois avassaladora. nos 45 minutos de viagem eu estava com vontade de me jogar pela janela do carro em movimento, mas fiquei sentada em silêncio, claro. quando estávamos finalmente chegando em casa, depois do que pareceu a hora mais longa da minha vida, ele disse que apesar daquilo tudo, ele tinha deus e isso era o suficiente. depois me convidou para ir a um culto na igreja dele, a universal: eu quase fui.
quando esse episódio aconteceu, eu estava lendo “belo mundo, onde você está?”, romance da autora sally rooney, que me ajudou a processar esses sentimentos na época. abro meu kindle agora pra repassar as anotações que fiz: acredito que a leitura acalmou meus ânimos pois me identifiquei com as questões que as personagens discutiam: reflexões sobre mudanças climáticas, marxismo e a crença na revolução, ter filhos ou não ter filhos, o papel da literatura num mundo em colapso, a crise estética causada pelo plástico, a fé em deus, o bombardeamento de informações diárias e o papel da internet no caos, entre outras coisas. fiquei com vontade de reler o romance, mas também fiquei pensando: saber que outras pessoas já entenderam que a civilização está em colapso talvez não seja mais suficiente pra mim, preciso saber como aliviar os sintomas de viver no colapso. será que é possível? e se?
quando o agora inelegível ex-presidente foi eleito em 2018, a água bateu na bunda e eu fui pra militância. entrei num coletivo, me filiei a um partido, li marx & engels, aprendi sobre o ecossocialismo e, durante um ano, eu acreditei na revolução socialista. de certa maneira, aquela era a minha fé: tinha algo maior do que eu, uma utopia, um sonho. a pandemia veio, o coletivo que eu participava se mostrou uma grande fraude e eu me desencantei. hoje não milito mais e quando olho para os meus amigos que continuam nessa sinto uma aperto no coração, pois estão exaustos & deprimidos. eu não acredito mais na revolução, só que não acreditar em nada também me deixa exausta & deprimida. e se?
aqui entra o pôr do sol. B. veio me visitar recentemente e me convidou para ver o sol se pôr atrás do cambirela, um fenômeno que acontece todos os dias e que eu consigo assistir de camarote a 50 metros da minha casa. descemos a ladeira tortuosa, atravessamos o beco que dá na praia, subimos no píer de concreto e ali ficamos por horas. o sol descendo e sumindo atrás do morro, as gaivotas sobrevoando nossas cabeças e mergulhando aqui e ali atrás de peixe, as nuvens cirrus a quilômetros de distância, as cores no céu mudando rapidamente de azul para branco para amarelo para salmão para vermelho para roxo para marinho e em algum momento ainda era possível enxergar cinza, lilás, verde. a lua crescente aparecendo e depois vênus e depois marte e o cruzeiro do sul e as outras constelações que eu só sei identificar com a ajuda da internet. o barulho do mar se somando ao som dos motores dos barcos pescando tainha e colhendo ostras, interrompidos apenas pelas nossas risadas e suspiros, pois a cena era linda, perfeita, maravilhosa.
e se a minha fé estiver na natureza? gosto da ideia, mas é uma fé agridoce. a civilização destrói a natureza, ao mesmo tempo que é natureza, então se autodestrói e me faz pensar “quanto tempo de sobra eu tenho para ver os pores do sol?”. mesmo assim, a natureza, que é a vida em si, que sou eu, é o mais próximo da ideia de deus na qual me vejo acreditando. quando eu estou ali na praia, olhando o cambirela, o céu, a lua, o sol e as estrelas, tudo tão grande, tão fixo, tão belo, eu respiro e agradeço por existir no mesmo tempo-espaço que esses seres/fenômenos/espíritos.
na última semana, eu vi o pôr do sol seis vezes. na sexta choveu, não fui. no domingo não foi tão legal, pois uma família que mora na beira da praia estava com a música alta demais e atrapalhou a minha imersão. tudo bem, ao sair de casa para ver o pôr do sol, eu entendi que a fé é um exercício. usando de referência a minha criação católica, nem toda missa deve ser esclarecedora; o que importa, aparentemente, é ir. e eu tô indo, quando dá, no meu ritual diário do pôr do sol — e uma vez por mês no ritual da lua cheia.
minha busca pela fé é jovem. talvez eu perceba que, assim como a felicidade, a fé é algo que tem que buscar sempre; não tem um final, é um ciclo. talvez eu leia esse texto daqui uns meses e pense “meu deus, que delulu” & talvez você esteja pensando isso nesse momento. não afirmo nada, sei poucas coisas. sei, por exemplo, que saturno vai ficar em peixes até maio de 2025, então provavelmente estarei em estado de surto por mais um tempo. por ora, concordo com uma coisa que E. me disse esses dias: do futuro eu só espero uma coisa: que a próxima safra de mandioca dê boa.
luana
fiquei um tempo sem publicar porque minguei junto com a última lua minguante. nesse período introspectivo, voltei a ler bastante, e eu já notei que não consigo equilibrar a leitura com a escrita, parece que elas competem pelo mesmo espaço na minha rotina. pra compensar, fiz uma lista dos livros que terminei recentemente:
antes do baile verde, lygia fagundes telles (companhia das letras, 2009). foi meu primeiro contato com a autora & li com S., minha companheira de leituras. até mês retrasado, líamos nas quartas à tarde como grandes herdeiras (e não trabalhadoras autônomas sem trabalho) que podem desfrutar de uma tarde de leituras & risadas em horário comercial. mas como o trabalho sempre vem, mais cedo ou mais tarde, agora lemos nos domingos de manhã, às 9h, como grandes senhoras aposentadas. leiam contos em conjunto, é bom demais!
sul, de veronica stigger (editora 34, 2016) . um mimo que ganhei de aniversário, o livro é composto de três textos de gêneros literários distintos — um conto, uma peça e um poema — que são atravessados por um objeto comum: o sangue.
fun home, de alison bechdel (todavia, 2018). estava querendo esse livro há muito tempo, mas queria lê-lo no físico — acho que algo da experiência de ler quadrinhos se perde no kindle — e nunca me movimentei pra comprar. até que ganhei de S., também um presente aniversário. se tornou um dos meus livros favoritos da vida.
também li queer, de william s. burroughs (companhia das letras, 2017), e não gostei tanto, mas vi que vai sair uma adaptação pra cinema dirigida pelo luca guadagnino, então valeu a leitura.
e bigornas, da yasmin nigri (editora 34, 2018), livro de poesia que B. me emprestou. finalizo esse texto com um poema extraído de lá. beijos & tchau!
que bom que o pôr-do-sol aos mares existem
com a Lua, refletindo o brilho de cada fase
bem, que bom que tu existes
Que possamos seguir com fé, fé na gente, nas conexões, nos caminhos e desvios ! Em Retorno de Saturno por aqui também hehehe sobrevivendo ao caos