preciso confessar uma coisa: drivers license, aquela música da olivia rodrigo, me influenciou a tirar a minha própria carteira de motorista. os outros fatores de influência foram 2) a morte do meu pai e 3) o carro que ele deixou.
a relação entre automóveis e meu pai sempre existiu. ele trocou de carros e motos diversas vezes ao longo da vida e foi vendedor numa loja de autopeças por cerca de 20 anos. quando criança, eu tinha vergonha que colegas da escola me vissem no carro dele porque eram sempre quadrados, antigos, não modernos. eu tinha 19 quando ele comprou o primeiro modelo arredondado: um corsa. foi o carro que pagou parte da cirurgia quando ele adoeceu.
esse é um texto sobre o luto e a vontade de continuar sendo impactada por uma pessoa que não existe mais.
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i got my drivers license last week/ just like we always talked about/ cause you were so excited for me/ to finally drive up to your house/ but today i drove through the suburbs/ crying cause you weren’t around
a letra da música da olivia rodrigo não tem nada a ver com a minha realidade. aos 25, eu achava que jamais tiraria carteira de motorista e nunca tinha conversado com meu pai sobre dirigir. simplesmente não era a minha pira. só que aí ele morreu e eu não parava de ouvir a bendita música.
quando meu pai morreu, eu andava bastante de ônibus e ficava escutando drivers license sem parar porque eu gosto de ouvir música em movimento e sou dessas de escutar a mesma coisa até não aguentar mais. nesses momentos, minha imaginação seguia um fluxo próprio: eu fantasiava que estava no carro dele, dirigindo até minha cidade natal uma semana depois de ter tirado a carteira de motorista, com drivers license no talo e alguma amiga do meu lado, afinal eu teria medo de dirigir na BR sozinha tão cedo; meus dedos deslizariam pelo volante que as mãos do meu pai seguraram por tantos anos e trocariam de marcha tão conscientes dessa ação, enquanto pra ele era tão automático; eu encontraria um conhecido na rua e levantaria os quatro dedos da mão esquerda pra cumprimentá-lo sem largar totalmente o volante, que continuaria sendo tocado pelo polegar, exatamente como ele costumava fazer.
estalo os dedos e volto pra realidade: um ano se passou e eu ainda não dirigi o carro do meu pai. acho curioso que o luto e o aprender a dirigir, dois processos tão distintos, tenham andado de forma paralela todo esse tempo e só se interseccionaram no dia que me matriculei na autoescola. foi numa segunda-feira sem expectativas em maio do ano passado. eu tinha recebido a grana de um projeto. uma amiga contou que tinha se matriculado e o valor que ela pagou era o mesmo que eu tinha acabado de receber. tive um surto de euforia. entrei em contato com a autoescola e estou nesse lance até hoje. não aguento mais.
entretanto, tenho um pressentimento. em abril fez um ano da morte do meu pai. não sei se é assim com todo mundo, mas o luto mudou depois disso. as datas começam a se repetir e já não é mais a primeira vez que passo pela maioria das coisas; não penso mais “ano passado estava com ele nessa data,”. não. é diferente. me sinto mais forte. já passei essa data sem ele. estou mais velha sem ele. estou viva sem ele. é possível sem ele. é triste sem ele, mas é feliz também.
ah, sim, o pressentimento. o pressentimento é que se o luto mudou, essa situação com a minha carteira de motorista vai mudar também. vou passar na prova, receber a versão digital da minha carteira de motorista em 7 dias e finalmente dirigir o carro que foi dele. vou botar uma música pra tocar que não é drivers license porque ninguém aguenta mais ouvir isso. vou dirigir, mas não vai ser pelos subúrbios porque a gente não fala assim no brasil. não vou de carro até a casa que ele morou porque são 180 km de distância e vai levar um tempo até eu exercer a prática pra dirigir na rodovia. mas, sim, talvez eu chore porque ele não está mais por perto.
abaixo, um poema.
se eu tivesse passado na prova do detran
eu iria pra casa da minha mãe
e ela ia me deixar digirir
o teu carro
pois ela precisa do papel
que nem é papel
pixels —
ela precisa dos pixels
que comprovam
que eu estou habilitada
a colocar as mãos
no mesmo lugar
onde você colocava as suas
habilitada a deslizar os dedos
pelo volante e pelo
câmbio
alô,
pai
tô com saudade
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tenho muito a destrinchar sobre o luto. hoje, escrevi essas palavras pra tentar trazer sentido pra estranha relação entre a morte do meu pai e a carteira de motorista que nunca chega porque eu reprovo na baliza. de qualquer maneira, eu sempre carrego a dele comigo. encontrei no dia que estava separando suas roupas pra doar. a foto é da mesma época em que deixei de morar com ele. observo esses olhos e penso em todo o medo que ele tinha de me deixar ir. será que ele viu o mesmo nos meus?
até a próxima.
luana
ai, me pegou de um jeito :'(