eu sou a mais velha de três filhos. comparada aos meus irmãos, nas fotos de família, existem mais registros fotográficos em que eu apareço do que qualquer um deles.
nos anos 90, a fotografia já era das massas: câmeras analógicas portáteis e automáticas eram acessíveis, os filmes e a revelação não eram caros. com o negativo em mãos, inclusive, você podia fazer inúmeras cópias da mesma pose em diversos tamanhos — se armazenados corretamente, daria pra digitalizar ou ampliar esses negativos até hoje! e mesmo sem os negativos, não se mostrou difícil para as famílias brasileiras guardar álbuns e mais álbuns de fotos ao longo das décadas.
minha família, na verdade, não armazena fotos em álbuns, mas em uma caixa bem grande com tudo solto lá dentro. quando eu abro essa caixa — e isso deve acontecer a cada dois anos — eu encontro:
registros dos anos 80 e início dos anos 90, que incluem muita coisa da família estendida, minhas tias de permanente, meus pais namorando e casando, além de pessoas que já faleceram e outras que eu nunca conheci. também tem alguns poucos retratos em preto e branco dos meus pais quando crianças e meus avós mais jovens;
um volume bem grande de registros feitos entre 1995 e 2005, que incluem fotos minhas e da minha irmã, além uma foto do meu pai com a Gretchen (que hoje eu vou ficar devendo, mas publico aqui numa edição futura);
algumas fotos digitais que foram impressas em papel fotográfico e guardadas ali.
minha irmã do meio, Alana, nasceu em 2000 e eu lembro da câmera que nossa família tinha na época: retangular, preta, super leve, com foco automático e flash. muitas fotos foram feitas com essa câmera, mas a quantidade de registros da minha irmã vai diminuindo já durante sua infância. minha hipótese é que, em meados dos anos 2000, as câmeras analógicas começaram a ser substituídas pelas digitais e começou a ficar mais difícil comprar e relevar filmes. nesse período, minha família, que demorou pra fazer a transição do analógico pro digital, tirou menos fotos. (lembro que a mudança do VHS para o DVD também demorou e só aconteceu quando a locadora do bairro não tinha mais lançamentos em fita, só filmes antigos.)
em 2008, duas coisas importantes aconteceram pra essa minha história: Lucas, meu irmão caçula, nasceu e minha família comprou uma câmera digital.
eu escrevi que eu sou a pessoa da família com mais registros fotográficos, minha irmã em segundo lugar. só que, em número de cliques, meu irmão definitivamente foi o mais fotografado, justamente porque a câmera digital não te prendia a um filme de 24 ou 36 poses. agora, a gente podia tirar tantas fotos quanto coubesse no cartão de memória acoplado à lateral da nossa câmera kodak de 8,2 megapixels.
então, o que aconteceu pra eu ainda ser a filha com mais fotos? todos os registros — de foto e vídeo —, que fizemos entre 2008 e 2013, se perderam no momento em que o computador onde elas estavam armazenadas estragou.
existe algo que aconteceu na sua vida que você se sente mal até hoje, mesmo que anos já tenham se passado? pra mim, essa coisa foi perder os registros dos primeiros anos de vida do meu irmão. e mais: as fotos da minha adolescência desapareceram também.
eu cresci num período em que as pessoas estavam adaptadas ao processo de fotografar da época, que incluía: comprar um filme, colocar na câmera, fazer um número limitado de registros, levar o filme para uma loja que ia revelar as fotos e, depois de buscá-las, guardá-las em um lugar onde elas ficariam por anos e anos. quando meu irmão nasceu, a gente tinha uma tecnologia nova nas mãos: ela tornava o fotografar mais fácil e aí era só passar pro computador ou publicar na internet, mas ainda estávamos entendendo como esse armazenamento digital funcionava de verdade. diferente da caixa de fotos soltas da minha família, eu — uma adolescente com uma câmera digital e um computador nas mãos pela primeira vez — separava todas as fotos em pastas organizadas por data. me pergunto se não passava pela minha cabeça que o computador não ia durar pra sempre.
existem, sim, alguns poucos registros que não se perderam. são as fotos digitais impressas que eu mencionei anteriormente. fotos que a minha mãe mandou imprimir não porque achava que o computador podia estragar, mas porque não sabia muito bem o que fazer nesse período de transição entre o analógico e o digital. obrigada, mãe! como uma pessoa apegada a objetos que acionam memórias, eu sou muito grata por essas fotos impressas de baixa qualidade. hoje em dia, minha família guarda as fotos no celular mesmo (no aparelho, não na nuvem). quando troca de celular, passa o que dá de passar pro novo e vida que segue.
eu sou mais apegada — e também imbecil. até o começo desse ano, eu guardava algumas coisas no google drive e o resto eu deixava pro Meta armazenar pra mim: eu postava fotos no meu instagram e o resto, o que não era bonito pro feed público, eu guardava na minha conta do facebook. foi a maneira que eu encontrei de armazenar as coisas sem precisar pagar por espaço na nuvem, mas, como já diz o ditado, o barato custa caro. em janeiro, meu computador pegou um vírus (no estilo internet dos anos 2000 mesmo) e minhas contas do Meta foram hackeadas não uma, mas duas vezes. na segunda, minhas contas do facebook e instagram foram derrubadas, eu recorri, mas não deu em nada. perdi tudo. com essas duas grandes perdas, tomei providências: agora eu pago por armazenamento no icloud e tenho um hd externo. 🤡
lá em 2008, quando eu ganhei a câmera digital, um dos primeiros registros que eu fiz foi a minha primeira selfie. eu estava no quarto dos meus pais onde tinha um espelho bem grande, então eu fiquei de frente pra ele, de modo que eu conseguia ver o visor da câmera no reflexo e avaliar se estava mais ou menos enquadrado. lembro de estar usando uma camisa de botões branca e uma calça jeans azul, meu cabelo estava comprido e cacheado, solto, com as mechas da frente presas no topo da cabeça por um par de grampos. eu fiquei posicionada no canto da foto, fazendo biquinho, e o que mais dá pra ver é o meu braço. essa selfie foi minha foto de perfil no orkut por um tempo, mas é um registro que acabou se perdendo junto com todas as outras daquela época. até hoje, só tenho ela na memória. no fim das contas, talvez o hipocampo ainda seja o melhor disco rígido.
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eu quis contar essa história porque, recentemente, aconteceu o oposto: eu encontrei registros que eu nem lembrava que existiam.
nesse processo de salvar tudo o que posso no hd externo, eu também estou tentando armazenar direito o que eu produzo para o meu trabalho. assim, eu fui buscar no meu antigo computador meus trabalhos de 2019 a 2021. deu certo, encontrei várias coisas legais, mas o ouro estava em outra pasta: downloads.
em 2020, durante a pandemia, a dinâmica familiar era a seguinte: meu pai fazendo quimioterapia, meu irmão no 6º ano remoto através do google sala de aula, minha irmã trabalhando como se não houvesse pandemia, minha mãe segurando as pontas, e eu observando tudo de longe trancada no meu apartamento em florianópolis.
depois do primeiro mês de ensino remoto, eu percebi que minha mãe estava exausta e estressada, meu irmão perdido e estressado, então me ofereci para ajudá-los nas aulas online. de abril a dezembro de 2020, de segunda a sexta, às 8:15 da manhã, eu iniciava uma chamada de vídeo com o meu irmão e o auxiliava nas aulas, principalmente com a parte mais técnica da coisa que era baixar e subir arquivos.
a parte que ficava com a minha mãe eram os exercícios de educação física que, quase sempre, envolviam gravar um vídeo ou tirar fotos do meu irmão fazendo alguma atividade. aí, minha mãe gravava, me enviava pelo whatsapp, eu baixava e subia no google sala de aula. e foram esses arquivos que, três anos depois, eu encontrei naquela pasta de downloads. são fotos e vídeos muito engraçados que envolvem meu irmão em poses que ele jamais faria para uma foto e vídeos com atividades feitas em família que eram uma bagunça e uma brincadeira ao mesmo tempo.
meu núcleo familiar não viveu, em 2020, experiências fotografáveis. para além do covid, tinha a doença do meu pai, então poucas fotos foram tiradas. só que agora eu tenho um oceano de registros da pandemia e eles tem esse formato que é singular, mas tão próprio daquele período: fotos e vídeos no formato vertical de celular, a maioria com o nome padrão do download do whatsapp que mostra a data e a hora em que ele foi baixado — a arquivista de memórias obsessiva que habita em mim se deliciou com esse detalhe.
e o mais legal: há alguns vídeos em que aparece o meu pai. o câncer não é bonito, por isso há pouquíssimos registros dele em seu último ano de vida. descobrir esses vídeos e guardá-los no hd externo amenizou um pouco o sentimento ruim que ainda me persegue por ter perdido aquelas fotos de 15 anos atrás, pois senti que, dessa vez, eu resgatei coisas importantes. também tornou o hd, esse retângulo preto e sem graça, extremamente precioso. agora, se me perguntarem o que eu salvaria se a minha casa pegasse fogo, acho que eu tenho uma resposta.
luana
poxa, meu google fotos esta lotado, nao sei o que fazer para nao perder meu arquivos aaaaa, quero salvar todas as fotos e momentos ... tambem me sinto assim ! otimo texto <3