eu sou uma pessoa apegada à datas. eu sei o aniversário de várias pessoas de cor — gente famosa, do meu círculo social atual ou que estudou comigo na escola. eu lembro com facilidade o dia, mês e ano — às vezes até as horas — de diversos acontecimentos da minha vida, como se a única maneira de armazenar memórias fosse junto de uma linha do tempo. assim, quando meu pai morreu, eu sabia que aqueles dias iam ficar marcados no meu calendário dali pra frente.
antes mesmo d’A Ruptura, eu comecei a pesquisar sobre o luto. o que mais me interessava era ouvir de quem já tinha passado pelo que estava prestes a acontecer comigo. li livros & assisti vídeos, mas teve um em especial que me marcou. no vídeo em questão, a pessoa usou a analogia da caixa e da bola para explicar como a gente experiencia o luto ao longo do tempo. é simples: na caixa (vida) há uma bola (luto) e um botão. quando pressionado, o botão aciona toda a dor que o luto carrega. no começo, a bola é muito grande e preenche quase todo o espaço da caixa; consequentemente, o botão da dor é acionado diversas vezes. com o passar do tempo, entretanto, a bola diminui de tamanho. o botão ainda está lá, mas é apertado com menos frequência uma vez que o espaço para a bola navegar é maior.
sinceramente, eu não gosto muito dessa analogia. prefiro aquela que diz que o luto não diminui de tamanho, que é a vida que cresce em volta dele. o que fez esse vídeo ficar marcado na minha cabeça foi outra coisa: uma pessoa de luto há dois anos & como ela se comporta. usando uma blusa branca de gola rolê e um filtro que deixava sua pele borrada, ele manteve o tom de voz sereno o tempo todo: enquanto contava como foi descobrir que sua mãe tinha morrido, o processo de buscar informações que o ajudassem a processar o luto & toda a analogia da caixa e da bola. até que, em algum momento, ele se emocionou. seu botão tinha sido acionado.
até encontrar esse vídeo, eu tinha lido sobre pessoas que perderam entes queridos há bastante tempo e isso não era muito palpável pra mim. a única exceção tinha sido o livro da chimamanda ngozi adichie, notas sobre o luto, que, carregado de raiva, deve ter sido escrito nas primeiras semanas após a morte de seu pai. só que ele morreu velho e, por conta disso, também não me conectei muito com o relato dela. dois anos, não. dois anos era palpável.
a partir daí, essa data ficou ressoando na minha cabeça. dois anos, dois anos, dois anos. comecei a imaginar qual seria a cara do meu luto de dois anos: será que eu conseguiria falar sobre a morte do meu pai sem chorar ou será que eu não choraria mais? como eu contaria essa história? quais memórias ficariam? será que eu conseguiria lembrar de coisas boas e sorrir? quais gatilhos acionariam o botão da dor?
o dia chegou. hoje meu luto comemora dois anos. à minha eu do passado, curiosa & desesperada, devo pelo menos um ou dois parágrafos:
não é mais tão fácil, como era no começo, descrever o luto. eu ainda estou de luto? o luto é algo que se está ou algo que se tem? por ora, gosto da segunda opção. ele & as memórias são tudo que me restam e odeio a ideia de um dia não tê-los.
de acordo com a analogia da caixa e da bola, minha bola realmente diminuiu de tamanho. geralmente, ela bate incessantemente no botão quando eu estou de tpm. quanto à outra analogia, da vida que cresce em volta do luto, toda vez que algo grandioso acontece penso que meu pai não está aqui para saber disso. vou além: temo os grandes acontecimentos, pois não queria me afastar muito de quem eu era quando meu pai ainda estava vivo. ao mesmo tempo, penso naquela pessoa e não me vejo mais nela. o luto me transformou radicalmente.
agora, alguns parágrafos para ele.
pai, estou aprendendo a ritualizar o dia de hoje. ainda é um pouco confuso, fico insegura me perguntando se tem algo que deveria fazer. de qualquer maneira, eu volto pra casa. a sua casa, que você construiu, morou, me criou. é bom pra mim & tenho certeza que você ficaria feliz também.
eu queria fazer algo especial hoje e no fim algo especial realmente aconteceu: eu entendi porque gosto de voltar. aqui todo mundo te conhece, todo mundo tem lembranças suas, boca pra contá-las, ouvidos pra ouvi-las, risadas pra dar. até o uber tinha histórias suas pra contar, acredita?
as pessoas aqui tem medo de falar sobre a sua morte, eu também tenho. mas quando venho pra casa e escuto histórias & lembranças que te incluem, consigo lembrar que, antes de morrer, você viveu. tô aprendendo que isso é mais importante do que aquele fatídico 9 de abril.
compartilhar o que me resta com o que resta nas outras pessoas e descobrir coisas novas a partir disso. depois sentar & te escrever. chorar individualmente. me parece um bom ritual.
abraços,
maninha grande
#39 dois anos
eu chorei