não lembro exatamente quando conheci a Depressão, mas sei que o auge da nossa relação foi em 2016.
nesse ano, eu morava perto da universidade estadual com três amigas. até hoje, sempre que tenho a oportunidade, gosto de lembrá-las que, muito provavelmente, só sobrevivi àquele ano por conta delas: passar as noites derretendo coletivamente no sofá depois de um dia inteiro de trabalho, estresse & vontade de morrer me salvou. a louça suja na pia há três dias e todo mundo de acordo com isso foi um bônus.
das memórias dessa época, o que é importante para esse texto é o que aprendi com T.
antes de falar dela, porém, preciso contar que, desde pequena, eu tenho a tendência de ver só o lado negativo das coisas. na terapia, eu dizia que estava usando os Óculos da Negatividade quando identificava que minha perspectiva perante uma situação estava gravemente afetada por ela.
eu acreditava que ser uma pessoa negativa era a melhor maneira de navegar a vida. minha linha de raciocínio era: se eu esperasse pelo pior e o pior, de fato, acontecesse, eu não ficaria frustrada; na melhor das hipóteses, eu ficaria surpresa e animada que algo bom aconteceu. se eu esperasse pelo melhor e algo ruim acontecesse, eu ficaria triste & frustrada.
esse era o modus operandi quando conheci T.
ao contrário de mim, T. tinha os óculos da positividade. ela conseguia ver o lado bom das situações mais desafiadoras e sempre lembrava de agradecer as coisas simples. eu percebia isso e, por trás dos meus Óculos, revirava os olhos.
enquanto isso, eu seguia em direção ao fundo do Buraco. tinha crises de choro o tempo todo e jorrava tudo que havia dentro de mim sobre a pessoa mais próxima. muitas vezes, essa pessoa foi T. e ela não apenas balançava a cabeça ou dizia que ia ficar tudo bem, ela entrava de verdade na conversa.
T. costumava dizer que eu não podia controlar o que acontecia comigo, mas que os meus sentimentos eram minha responsabilidade. quando me tornei mais receptiva ao que ela dizia, o que levou um tempão, fui entendendo que mesmo sem querer ou saber como eu fui parar no Buraco, quem tinha que sair de lá era eu. as pessoas podiam jogar cordas ou escadas, mas, infelizmente, eu que tinha de subi-las. pra isso, o modus operandi precisava mudar.
claro, os eventos externos e as estruturas sociais impactam a todos em níveis muito diferentes & só é possível escolher subir a escada quando a escada existe, ou seja, quando o básico é garantido. tendo isso, quando deixei a autocomiseração e o fatalismo de lado, eu consegui me movimentar, dentro do possível, individual e coletivamente, em outras direções.
minha relação com a Depressão terminou no ano seguinte. eu ainda estava no mesmo emprego, morava na mesma casa e tinha a mesma condição financeira de quando estava no Buraco. à minha volta, tudo seguia muito parecido, mas eu não me sentia mais tão mal.
eu morei só um ano com T. até hoje, quando identifico que estou usando os Óculos da Negatividade (e acontece com frequência), sinto falta de ter alguém como ela na minha vida. uma pessoa pra me lembrar que tem ar circulando nos meus pulmões, que eu faço três refeições todos os dias e que eu ainda posso ligar pra minha mãe a qualquer momento; uma pessoa pra me lembrar que eu tenho um trabalho que me sustenta, um teto que me abriga e que existem dezenas de pessoas que me amam, se importam ou minimamente gostam de mim.
o objetivo é ser essa pessoa pra mim mesma — o que é bem mais difícil do que o discurso faz parecer, especialmente quando tudo parece uma ameaça e a cama da autocomiseração é mais confortável.
a tenteada, entretanto, é livre.
luana
um documentário sobre a elite brasileira que mora em coberturas de prédios à beira-mar e vive completamente descolada da realidade:
uma carta para as mulheres escritoras do terceiro mundo:
Esqueça o quarto só para si —escreva na cozinha, tranque-se no banheiro. Escreva no ônibus ou na fila da previdência social, no trabalho ou durante as refeições, entre o dormir e o acordar. Eu escrevo sentada no vaso. Não se demore na máquina de escrever, exceto se você for saudável ou tiver um patrocinador — você pode mesmo nem possuir uma máquina de escrever. Enquanto lava o chão, ou as roupas, escute as palavras ecoando em seu corpo. Quando estiver deprimida, brava, machucada, quando for possuída por compaixão e amor. Quando não tiver outra saída se não escrever. (Gloria Anzaldúa)