se o verão fosse de comer ele seria agridoce não obstante na infância eu-criança o verão era apenas doce tempo livre viagem de carro & pé sujo picolé chiclé sacolé na esquina da rua da vó matildes
desde que o verão começou, venho tentando escrever sobre ele, mas não sai nada de bom. lembro do tapa na cara de rilke (que escreveu as cartas de cartas a um jovem poeta com a mesma idade que tenho hoje), “se o cotidiano lhe parece pobre, não o acuse: acuse-se a si próprio de não ser muito poeta para extrair as suas riquezas”. a parte boa é que rilke esmurra, mas faz carinho: “mesmo que se encontrasse numa prisão, cujas paredes impedissem todos os ruídos do mundo de chegar aos seus ouvidos, não lhe ficaria sempre sua infância, esta esplêndida e régia riqueza, esse tesouro de recordações?”
as memórias são tudo que tenho.
passava meus dias de verão em laguna, no distrito de ribeirão pequeno, ao lado de ribeirão grande, que, apesar do nome, sempre foi menor que seu vizinho. minha vó lá nasceu e lá segue firme, com seu sotaque açoriano, sua casa de madeira e as figuras bíblicas nas paredes cor de creme.
existiam os dias de praia e os dias de não-praia. as manhãs dos dias de praia sempre passavam devagar. comer na laguna é muito caro, dizia minha mãe, a gente almoça aqui e depois vai. perto das 13h, colocava a roupa de banho, lambuzava o corpo de protetor solar sundown fator 30 e entrava no carro. em trinta minutos, estávamos no mar grosso.
nunca entrei no mar sozinha, a não ser na beiradinha. o mar era a parte principal: minha ansiedade em entrar na água salgada o mais rápido possível fazia minha mãe resmungar. primeiro tem que alugar cadeira, guarda-sol, passar mais protetor solar, o mar é de-pois. vamo, vamo, vamo! na água, finalmente. meu pai segurava meus punhos e os erguia bem alto, o resto do corpo sendo puxado junto. pulávamos as ondas que nunca paravam de vir. vamos mais fundo, pai! nunca vi minha mãe no mar, ela sempre ficava na areia pegando sol e fazendo as transações monetárias das comidas-de-praia.
milho, picolé, crepe, água de coco. milho com margarina, picolé de chocolate. um dia minha mãe pegou um palito premiado que valia outro picolé, de fruta. procuramos o vendedor ambulante e dividimos o prêmio sabor uva. no fim da tarde, crepe suíço sabor batom. na volta pra casa, busca água na bica pública e compra pão de trigo no angeloni do centro pra tomar café com a vó.
nos dias de não-praia tinha os livros. eu sempre levava uma pilha deles, cinco ou sete, e geralmente sentava na sacada da vizinha, minha tia-avó, que passava o dia na roça de café ou mandioca, pra ninguém me incomodar. e tinha a jéssica, minha amiga de verão. ela também ia visitar a vó dela que morava atrás da casa da dona matildes. estávamos divididas apenas por um riacho e muitas árvores. da janela da cozinha da vó, eu via a janela da sala da vó dela; entre janelas, trocávamos acenos que diziam: já posso sair pra brincar.
mãe, vou na jéssica, eu berrava e saia portão afora. subia o morro à direita, depois virava outra direita e atravessava uma ruela que dava no riacho, pulava de pedra em pedra, perfeitamente dispostas pela natureza para servirem de caminho sobre a água doce, e chegava nos fundos da casa da vó de jéssica. passávamos a tarde ouvindo cds e inventando coreografias das nossas músicas preferidas, brincando de faz-de-conta, pique-esconde, subindo em pedras, descendo até a praça, até o parquinho, até o porto.
no fim da tarde, eu voltava pra casa. vai lavar esse pé sujo, minha mãe dizia. vem tomar café, falava minha vó. depois íamos à missa ou assistíamos tevê em família ou alguém mandava eu brincar com a minha irmã. à noite, descíamos o morro e comíamos nos bares locais: pastel frito, x-burguer, porção de batata frita ou camarão, guaraná.
tinha que esperar todo mundo ir dormir pra poder deitar. meu núcleo familiar era sempre o último a chegar na casa da vó, pois meu pai sempre pegava férias mais tarde que todo mundo. assim, os quartos de visita já estavam todos ocupados e a gente ficava com a sala. por esse mesmo motivo, éramos também os primeiros a acordar e, cedinho, um novo dia de praia ou não-praia se repetia.
ainda visito minha vó, mas nunca mais vi a jéssica, só na internet. quanto tô lá, sigo lendo livros em cantos escondidos pra ninguém me incomodar, mas agora carrego todos num único dispositivo. ainda é bom, mas é diferente. agridoce. pelo menos aprendi a gostar desse perfil de sabor.