quando olivia rodrigo escreveu drivers license, ela deixou de contar uma parte importante da experiência de ser uma motorista recém-habilitada: muitas pessoas não vão confiar em você atrás de um volante. pelo menos, quase ninguém confia em mim. ao ponto que eu mesma passei a questionar se consigo mesmo dirigir um carro. todo aquele dinheiro gasto na autoescola foi em vão? todo o stress?
assim, a primeira vez que eu dirigi um carro sozinha foi sob as seguintes circunstâncias: a) alguém precisava de carona — havia a desculpa da necessidade, que fazia o ato valer mais do que apenas querer dirigir; e b) a proprietária do carro, minha mãe, não ficou sabendo, pois, se soubesse, não permitiria. ela não confia em mim e isso me afeta mais do que gosto de admitir. enquanto dirigia sozinha pela cidade no carro dela, percebi que, nas tentativas de evitar que o pior aconteça, ela minimiza a minha autonomia.
eu não queria que fosse um Evento. a tarefa era simples: uma pessoa precisava de carona, eu tinha acesso a um veículo e uma carteira de motorista; documento que me custou quase dois salários mínimos e que, até então, eu só tinha usado pra substituir a minha carteira de identidade velha. era uma viagem de 14km somando ida e volta. eu ia deixar E. num lugar e voltar pra casa. queria que fosse simples, corriqueiro; não queria que representasse um argumento contra a resistência da minha mãe, mas, no fundo, eu sabia que era isso.
aguardo E. dentro do carro, na garagem. a Ansiedade está lá comigo, ela é meu encosto. ajusto o bec: banco, espelho e cinto. fecho os olhos, respiro. coloco as mãos no volante. consigo pensar em pelo menos quinze coisas que podem dar errado (bater em um carro, atropelar alguém, derrubar um ciclista, capotar, falhar no balancinho, ter um ataque de pânico, ficar sem gasolina, perder a provisória, morrer, etc). rezo pro meu pai ou algo parecido com isso, não sei. no espelho retrovisor, uma corrente de ouro com as alianças que meus pais usavam está pendurada. respiro de novo. espero que tudo dê certo, penso. aí lembro que eu não quero mais esperar pelas coisas boas, quero fazê-las com intenção. o que eu quero? ir e voltar pra casa em segurança. eu sei dirigir. eu consig— o fluxo de pensamento que foi da catástrofe à autoajuda é interrompido quando E. senta no banco do carona. eu ligo o carro.
ainda não peguei bem o jeito com as marchas. são muitas coisas pra pensar & fazer ao mesmo tempo. manobrar também é difícil, ainda mais com um carro sem direção hidráulica. saio da garagem mais rápido do que gostaria. vai devagar, E. fala. eu sei, eu sei! a Ansiedade está sentada no banco atrás de mim, me estrangulando com suas mãos fortes, invisíveis, provavelmente rindo.
são cinco e meia da manhã, não tem praticamente ninguém na rua. todos os lugares que passamos tem velocidade máxima de 60km/h. reduzir a marcha ao fazer curvas ou passar por lombadas, assim como colocar na primeira quando parar o carro, ainda não são ações automáticas pra mim. por isso, escuto mas não processo nada do que E. está falando. algo sobre volante e curvas, não sei. apesar disso, estou impressionantemente calma para quem estava afogada em pensamentos catastróficos cinco minutos antes.
chegamos no ponto final. da Lista De Coisas Que Podem Dar Errado Ao Dirigir Sem A Supervisão De Uma Pessoa Que Dirige que eu organizei mentalmente, não aconteceu nada do que imaginei. estaciono e olho pra E. buscando validação por ter dirigido decentemente, mas sei que não recebo esse tipo de coisa dele. então pergunto, “não foi tão ruim assim, né?”. claro que não, ele responde. nos despedimos e eu entro no carro de novo. agora é pra valer, sou eu & yo. fico animada! sinto aquela vontade de dirigir que só recém-habilitadas tem. a Confiança chegou tímida, mas chegou. ela não se dá bem com a Ansiedade que, dessa vez, ficou quietinha. começa a chover. procuro onde liga o para-brisas e vou.
pego todos os semáforos abertos, com exceção dos dois últimos. em um deles, confundo as marchas e o carro faz um movimento estranho, mas sei o que estou fazendo errado. corrijo. não tem ninguém pra dizer que preciso prestar mais atenção ou que o erro que cometi é ridículo. ninguém dizendo que estou dirigindo como uma louca, nenhuma buzina, nada que me deixe pra baixo. como é bom dirigir sem alguém te dizendo o que você pode fazer diferente. canto uma música da taylor swift a capella até chegar na porta de casa.
escrevi esse texto no dia do Evento. decidi deixar as palavras descansarem, pois não sabia como finalizá-lo. alguns dias se passaram e, agora, relendo-o, consigo ver a frustração nas entrelinhas. dezenas de questões pra levar pra terapia. me sinto uma adolescente de novo. identifico a superproteção, a falta da autonomia & a presença do controle; e aquele gosto amargo de quando alguém que te ama como ninguém, também te coloca pra baixo como ninguém.
minha mãe costumava confiar em mim, eu acho. aos 19, quando falei que queria sair de casa, ela foi uma das primeiras pessoas a me apoiar. meu pai, pelo contrário, criou listas mentais de tudo que poderia dar errado. ele era o super cauteloso, super preocupado, super protetor. tenho inúmeras perguntas, alguns palpites, nenhuma certeza. talvez essa seja mais uma das nuances do luto que eu ainda não entendo.
ligo pra minha mãe e conto o que fiz, como se estivesse confessando um crime. ela reage como imaginei. eu reclamo. “parabéns, filha”, ela diz, por fim.
Adorei esse. Tbm tenho uma história interessante sobre a carteira de motorista (que não cheguei a tirar, no caso). Te conto daqui uns dias :)