estou lendo o memoir da michelle zauner, aos prantos no mercado. leio a edição em inglês, na verdade, crying in h mart, pois comecei a leitura em outubro, antes da editora fósforo lançá-lo no brasil. não gosto de demorar tanto pra finalizar um livro, a experiência fica fragmentada e sinto que não absorvo como gostaria. gosto de mergulhar na leitura, nadar entre cada linha e emergir na última página já com falta de ar. mas este memoir fala sobre luto. e quando zauner começa a descrever o adoecimento de sua mãe por conta do câncer, eu desacelerei.
desde que o luto se tornou parte da minha rotina, busco ler sobre o assunto. me interesso principalmente por relatos; quero ouvir a experiência de quem também vive isso. & é curioso: a morte do meu pai também foi a morte do pai dos meus irmãos, do marido da minha mãe, do filho do meu avô, do irmão das minhas tias, do tio dos meus primos. mas não consigo conversar com essas pessoas, ainda não consigo ouvir suas histórias. prefiro ler/ouvir sobre alguém cuja morte não me atravessa.
norwegian wood, clássico de haruki murakami, foi o primeiro livro que li quando meu pai estava ainda doente. pensava que se lesse sobre a experiência do luto, mesmo que a partir da ficção, estaria mais preparada para lidar com a perda. quatro meses depois descobri que nada te prepara pra viver a morte de uma pessoa tão próxima. você só vai fazendo as coisas mecanicamente como se elas não fossem tão grandiosas: frequentar o hospital mais que o mercado, atender ligações de pessoas que querem falar com seu pai e explicar a situação no mesmo tom de voz que você usaria se ele estivesse apenas viajando, escolher uma roupa para o velório, carregar o caixão que leva o homem que sempre te carregou, passar um sábado de sol no crematório, esvaziar seu armário, vender suas ferramentas de trabalho no marketplace do facebook, removê-lo do grupo do whatsapp. um dia ninguém mais liga perguntando por ele, a lista de coisas a fazer acaba e você fica apenas com o vazio. um vazio que começa no espaço físico, depois migra para dentro do peito e se aninha ali.
li notas sobre o luto, de chimamanda ngozi adichie, em junho, dois meses depois do acontecimento. é um relato carregado de raiva, provavelmente escrito no começo do luto da autora. foi uma leitura que também me gerou raiva, pois seu pai morreu velho. o meu tinha acabado de fazer 54. eu tinha apenas 25, meu irmão mais novo, 12. ele viveu apenas doze anos ao lado do pai. isso é menos tempo que a nossa diferença de idade. o lugar, de annie ernaux, foi a próxima leitura escolhida. uma autosociobiografia sobre seu próprio pai, sem nada de morte ou luto. curto e recheado de memórias, foi um texto que me inspirou a publicar minhas próprias lembranças e lançar esta newsletter.
a ridícula ideia de nunca mais te ver, da autora rosa montero, traça um paralelo entre a morte de seu marido e a vida de marie curie, a cientista polonesa que descobriu o rádio e o polônio e também foi viúva. eu não esperava nada disso quando escolhi lê-lo, mas, apesar de uma leitura curiosa, foi ali que encontrei a frase que me ajudou a lidar com meu próprio luto — e era exatamente isso que eu queria ao me debruçar sobre tantas páginas: encontrar algo que me ajudasse a entender & a processar o que eu sentia. eu não tenho o livro para citá-lo corretamente, mas a ideia geral é: nunca superamos a morte de alguém, reaprendemos a viver.
quando meu pai morreu, minha vida se dividiu em dois: tudo que eu fui, fiz e tive antes da ruptura & tudo que eu sou, faço e tenho depois dela. inicialmente, eu via o luto como o limbo entre esses dois estados, o que foi & o que vai ser. agora, quase dois anos depois, eu tenho a sensação de que serei pra sempre um filha enlutada; que o luto é intrínseco a este lado da ruptura. no lugar de um pai, eu tenho o luto. ele não diminui de tamanho, suspeito até que cresça, mas a vida também cresce envolta dele.
assim que finalizar aos prantos no mercado, quero ler o ano do pensamento mágico, da joan didion, e seguir escrevendo sobre as minhas memórias em formato de prosa ou poesia. meu pai foi uma pessoa que sempre me estimulou a fazer o que me deixava feliz. costumava dizer que era uma forma de ele, também, ficar feliz. o luto, por sua vez, me estimula a escrever pra tentar entendê-lo, para conhecê-lo melhor já que seguiremos juntos daqui pra frente. me segurar a essa ideia de permanência traz uma sensação de segurança. o luto não é meu pai, mas é o que tenho agora e ninguém pode tirá-lo de mim.
a saudade permanece.
luana
Obrigada!