#29 queer
"escrevo porque tenho medo de escrever, mas tenho um medo maior de não escrever" — gloria anzaldúa
o despertador toca às 7:20. o quarto está completamente escuro, o que significa que eu não estou em casa. procuro meu celular e vou até a janela. tenho dificuldade com a persiana, então ligo a lanterna. atrás dela ainda tem o blackout da janela. abro. agora sim parece sete da manhã. o cenário do outro lado do vidro são prédios quase prontos, ainda sem moradores; o centro-leste ao fundo com seus prédios mais antigos, o monte serrat em último plano; pra direita, o mar e o sul da ilha. do lado de dentro da janela, a mesa de trabalho do dia. olhando pra esta cena, me deu muita vontade de escrever sobre um tema específico. um que está na minha cabeça desde que comecei este projeto, mas que nunca tive coragem de fazê-lo: eu, queer.
acho que a ligação da cena com a minha vontade de escrever sobre esse tema tem relação com este artigo da artista lucy dacus. assim como é a minha intenção aqui, dacus escreve sobre o processo de se entender como uma pessoa queer, mas não sabe muito bem por onde começar, então ela descreve o espaço em que está:
Tem um prisma em frente minha janela. Enquanto eu procrastinava a escrita deste ensaio, fiquei deitada por tanto tempo que vi os respingos do arco-íris deslizarem de uma parede para outra e fiquei tão imóvel que parecia que o sol estava orbitando minha cama, e não o contrário. O arco-íris não é uma metáfora aqui. Não é mais junho, afinal de contas. (tradução livre)
suponho que a vista que eu tenho desta janela, inconscientemente, também me incentiva a escrever esse texto. daqui, tenho uma boa visão da cidade que me deu suporte pra começar a entender o que eu sentia, que me trouxe respostas pra dúvidas antigas e novas perguntas também. além disso, na rua ao lado ficava a balada onde beijei uma menina pela primeira vez, e o quarto onde acordei esta manhã é no apartamento de F.: um amigo que me apresentava seus “amigos” em 2012 e hoje me convida pra jantar no lar que compartilha com seu companheiro há anos.
o que não me incentiva a escrita deste texto é a invalidação do que eu sinto. afinal, eu me relaciono com um homem cis hétero há cinco anos. a reviravolta na história, até pra mim, é que esse relacionamento foi muito importante pra eu entender e me aceitar como uma pessoa queer.
eu não vou explanar sobre heteronormatividade compulsória aqui. vou considerar que você, leitore, entende o que é esse fenômeno e o legitima. combinado, então.
as primeiras perguntas sobre gênero e/ou sexualidade surgiram aos onze anos, mas foi com passos de bebê que, aos dezenove, eu comecei a entender algumas coisas, chegando a algumas conclusões só nos vinte e poucos. aos quase trinta, ainda tenho perguntas sem respostas. acho que aqui é um bom momento pra dizer que, nesse texto, eu vou falar só de orientação sexual, não vou entrar nas questões de gênero, pois, enquanto já estou mais resolvida com a primeira, não me sinto pronta pra escrever sobre a segunda.
de letra em letra
de todas as letras que formam a sigla lgbtqiapn+, a primeira em que aterrissei foi o a. eu fui uma late bloomer, o que significa que eu demorei pra viver experiências comuns de adolescentes comuns — e isso inclui, também, uma puberdade tardia. nascida com um útero, meu corpo só se tornou fértil aos dezesseis anos e isso foi desastroso pra minha autoestima. numa idade onde as outras garotas e garotos estavam com os hormônios à flor da pele e os corpos em constante mudança, aos quinze eu ainda parecia uma criança que, com acesso à internet, pesquisava coisas. ninguém se atraia por mim e eu não sentia nada por ninguém também, assim, o google me disse que eu podia ser assexual. fez muito sentido até a menstruação descer, as espinhas surgirem e eu passar a frequentar espaços que não eram a escola.
do a, pulei pro d. foi L. quem me falou, ainda em 2012, que a sexualidade é um espectro e a demissexualidade fica ali na área cinzenta (fonte: tumblr). enquanto isso, na escola, um fenômeno peculiar aconteceu: em colégio público, a maioria dos jovens do ensino médio estudavam à noite ou desistiam dos estudos, assim, minha turma matutina de terceiro ano era formada por pouco mais de dez pessoas, tendo apenas um menino. do resto da turma, metade eram adolescentes lésbicas e todas davam em cima da nerd que nunca tinha ficado com alguém, afinal, ela provavelmente era uma sapatão no armário. a nerd era eu.
“será que eu sou sapatão? não pode ser, eu sempre me interessei por homens mesmo eles sendo personagens fictícios”, “essas meninas querem ficar comigo, ninguém mais quer, eu poderia beijar uma delas e acabar com isso logo”, “mas aí eu seria lésbica!!!” eram algumas das coisas que eu pensava aos dezessete anos. meu medo de ser uma sapatão pecadora manteve minha boca virgem, até que, no ano seguinte, eu finalmente beijei um cara. e, com essa experiência nas costas, achando que não haveria mais a possibilidade de ser lésbica, eu comecei a sair com mulheres.
é curioso, e super ultrapassado, essa ideia de que você precisa estar sexual e/ou romanticamente ativa para validar sua orientação sexual. e isso atinge, principalmente, bi e pansexuais. quem questiona o homem gay, ex-criança viada com a família-sempre-soube, que entendeu sua sexualidade sem precisar beijar outro homem? e essa ideia também é reproduzida por quem sofre com isso. quando namorei pela primeira vez e a pessoa era um homem cis, a sensação que tive foi de voltar à estaca zero. ah, eu sou hétero agora? que grande merda.
consigo ver através da janela pessoas visitando um apartamento no prédio da frente. faço uma pausa depois do último parágrafo. sinto muita raiva, uma vontade de chorar. faz meses que não choro, mas não é porque não me sinto triste, é só um efeito colateral do remédio que tomo. meu oftalmologista me prescreveu lágrimas artificiais, mas não é por conta do remédio. é só porque eu passo tempo demais na frente do computador.
aqui tá a reviravolta na história que eu mencionei uns parágrafos atrás: meu relacionamento com um homem cis hétero, enquanto monogâmico, me deu o espaço que eu precisava para entender a minha sexualidade. não era sobre com quem eu me relacionava, mas o que eu sentia; o que era genuinamente meu independente das circunstâncias externas e das aparências. e quando caiu essa ficha, eu só queria berrar pra todo mundo: eu sou queer!
permaneci em silêncio, porém, confesso, arquitetei algumas vezes a minha Saída Do Armário. mas o que é sair do armário, afinal? contar pra mãe? fazer um vídeo e postar nas redes sociais? escrever um artigo? publicar um memoir? se é pra falar nesses termos, a verdade é que a gente sai do armário o tempo todo e quase nunca é um Grande Momento; muitas vezes é só uma menção indireta e sem intenção no meio de uma conversa com alguém que ainda não sabia.
olhando em retrospectiva, acho que eu só queria ser validada enquanto pessoa queer mesmo estando em um relacionamento com um homem cis. às vezes, conversando com alguém sobre qualquer-coisa, eu parava de prestar atenção e começava a imaginar como seria se eu apenas interrompesse a pessoa gritando “eu sou queer!!!”. seria, no mínimo, engraçado. depois de um tempo, aquietei-me. minha própria validação se tornou suficiente.
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deito. pingo umas gotas de lágrimas artificiais nos olhos, eles estão secos. me lembro de um texto de Gloria Anzaldúa: Falando em línguas: uma carta para as mulheres escritoras do terceiro mundo (1980), dirigido às mulheres de cor, o que não é meu caso, mas me identifico com muitas passagens.
Escrevo para registrar o que os outros apagam quando falo, para reescrever as histórias mal escritas sobre mim, sobre você. Para me tornar mais íntima comigo mesma e consigo. Para me descobrir, preservar-me, construir-me, alcançar autonomia. Para desfazer os mitos de que sou uma profetisa louca ou uma pobre alma sofredora. Para me convencer de que tenho valor e que o que tenho para dizer não é um monte de merda. Para mostrar que eu posso e que eu escreverei, sem me importar com as advertências contrárias. Escreverei sobre o não dito, sem me importar com o suspiro de ultraje do censor e da audiência. Finalmente, escrevo porque tenho medo de escrever, mas tenho um medo maior de não escrever.
através da janela vejo o sol se recolher. está na hora de ir, fechar o computador, arrumar a mesa, pegar minhas coisas e atravessar as ruas do centro em direção ao terminal, voltar para casa. essa também é a minha deixa pra finalizar esse texto que não sei quando vou publicar. espero que seja antes de junho, só pra não ser óbvia demais.
um abraço e desculpa incomodar,
luana
<3