aos não-moradores de são joão do rio vermelho,
eu já fui uma de vocês. já evitei visitar estas ruas, longas, estreitas e irregulares, onde as casas não seguem uma ordem numérica que faça sentido, porque “era longe demais”; porque não tinha nada para fazer aqui. conheci o bairro cinco anos após me mudar para a cidade que o abriga, e só porque as circunstâncias eram favoráveis para a moradorazinha do centro-leste: viria de carro, visitaria a praia.
não nego, porém, que um carro facilita — só tirei minha carteira de motorista depois de mudar para cá —, mas isso só é verdade entre março e setembro. na temporada, esqueça: venha ao bairro e não saia mais, condicione seu corpo para fazer quilômetros de bicicleta, faça amigos que ainda aguentem morar no centro, saia de florianópolis. na menor das piores hipóteses, conheça os horários de pico e se movimente entre bairros no fluxo contrário, sempre carregando um livro ou vários, ouvindo um álbum que você gosta. fora estas circunstâncias, que tem mais a ver com o problema de mobilidade urbana da cidade do que com o bairro em si, quero te contar porque eu escolho morar aqui.
eu adorava morar no centro-leste. era prático, movimentado, jovem, acelerado, seguro comparado aos centros de outras capitais brasileiras. até que a pandemia tirou tudo isso. o centro se tornou vazio, frio, doente; a única movimentação era a dos trabalhadores que nunca fizeram quarentena. o contrato de um ano do apartamento do Seu Carlos estava chegando ao fim e tomamos a decisão de nos mudar. no decorrer dos trinta dias de aviso-prévio, N., uma menina com quem eu tinha ido aleatoriamente à praia uns anos antes, compartilhou o anúncio de um quarto vago na casa dela. “é longe demais”, eu disse a E. quando descobrimos que a casa era no rio vermelho. “vamos pelo menos visitar”, ele respondeu. essa é uma das coisas que mais gosto sobre E.: o empenho das pessoas que cresceram ouvindo que “a tenteada é livre”. em duas semanas estávamos estabelecidos na nova casa, e, um ano e meio depois, sigo me apaixonando pelo rio vermelho.
o bairro tem melodia, uma miscelânea de sons que não se encontra em outro canto da ilha. é o ruído das árvores balançando antes da chuva em um dia nublado, é a sinfonia de sapos nas poças d’água e dos cachorros choramingando, procurando um lugar para se sentirem seguros, quando as gotas de água finalmente caem. é o barulho das janelas um pouco soltas no batente, com o moçambique, selvagem e livre, soando ao fundo em dias de vento suli. na floresta, o som do bairro é o silêncio, exclusivamente interrompido pelo som do vento nele mesmo ou pelas águas do rio. em dias de sol, os vizinhos escutam pagode, funk, sertanejo, trap, enquanto as crianças brincam na nascente, mergulhando, gritando, jogando água umas nas outras, chamando suas mães. na rua, é o som de motos e cavalos, de um cumprimento audível e abstrato a um desconhecido que atravessa seu caminho, é o barulho das famílias reunidas na garagem em dia de domingo.
o rio vermelho tem cheiro de flor, de fogo e de maresia. de floresta úmida, de fungos se proliferando, de terra adubada. tem cheiro de fruta nativa, de mel, de terra molhada, de comida temperada, de churrasquinho, de fritura na padaria em frente à escola. cheiro de mato, de pasto e de protetor solar ao mesmo tempo. tem cheiro de obra, de horta, de corpo trabalhador. às vezes, tem cheiro de carniça e mesmo os moradores mais antigos se perguntam se as histórias que contam sobre o bairro são verdade e, quem sabe, tem um homem morto no meio do mato. nunca encontrei um.
o bairro tem gosto de comida plantada e colhida em casa. gosto de bolo feito com as amoras gigantes do vizinho e o açúcar emprestado da vizinha. gosto da melhor pizzaria da cidade que fica há seis quadras de casa. gosto de vinho compartilhado na frente da lareira, de cerveja e de água salgada quando o sol atravessa as janelas e a gente atravessa a floresta em direção à praia. aqui tem olhos que brilham só de subir as dunas ou de virar pro lado contrário e dar de cara com o morro da costa da lagoa. tem o brilho das estrelas que não é interrompido pelas luzes da cidade & o brilho da lua cheia que dá de ver da janela que ilumina meu rosto enquanto escrevo este parágrafo.
toda semana eu deixo o rio vermelho e, não importa quantas horas, dias ou semanas eu passe fora, sempre sinto sua falta. sinto saudades da floresta, da praia, da água, das pessoas que dividem a vida comigo, das fofocas, das histórias, das borboletas em volta do maracujá, do beija-flor na bromélia em frente a janela do meu quarto, da gata ronronado no meu colo, de tudo que o bairro me permitiu construir pra dentro e pra fora de mim.
esta poderia ser uma carta de amor ao rio vermelho, mas, na verdade, meu objetivo não é reforçar o quanto este bairro me faz bem — sabendo, inclusive, que ele é tão grande e múltiplo que as pessoas podem ter experiências diferentes compartilhando até da mesma rua. meu objetivo é único e simples: fazer você, leitor desta carta, pensar que quem está longe demais é você.
com carinho,
luana
lembrando do dia que fui até você só pra almocar e acabei passando 5 dias seguidos dormindo aí 🤣 tenho tanta saudade 😭 assim que der me enfio por mais uma semana aí bju luana amo duas cartinhas :)
Quero muito conhecer...