eu conheço, tipo, cinco pessoas que não sofrem algum transtorno de ansiedade. e até os dados comprovam isso: segundo a OMS, o brasil tem a maior taxa de transtornos de ansiedade do mundo. os memes são muitos.
no último ano, eu tive ataques de pânico que me levaram a ter sintomas de agorafobia: a ideia de ter uma crise de ansiedade me levava a ter uma crise de ansiedade e eu passei a evitar situações que poderiam me deixar ansiosa, como sair de casa.
as coisas começaram a melhorar alguns meses depois dos primeiros ataques, pois a) eu tive apoio emocional da minha rede; e b) eu fazia terapia. assim, no movimento de superar o trauma, eu fui buscando ferramentas e criando situações-referência que me ajudaram no processo de reaprender a sair de casa sozinha. escrevi um poema sobre isso na época:
agorafobia
ir até a esquina
comprar camomila
maracujá
medo de colapsar
medo de entrar em pânico
medo de ter medo
me faz ter medo
de sair
coração acelerado
pensamento acelerado
meia-volta
percurso conhecido
mensurável
previsível
respira
coração normal
pensamento normal
trauma
rivotril
água
celular
lista mental
de pessoas pra quem eu posso ligar
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após as primeiras crises, fui ao médico e ele me receitou um rivrotil. clássico. eu o carregava pra cima e pra baixo, mas nem precisava tomá-lo pra ficar calma: a ideia de ter um remédio que podia me tirar de uma crise de pânico, caso eu a tivesse, automaticamente me levava a ficar menos ansiosa. perceber isso foi bem importante pra entender que o problema eram os pensamentos catastróficos e que eu não precisava acreditar neles.
minhas primeiras tentativas de sair de casa sozinha foram ir ao mercado. algumas vezes, meu coração começava a acelerar, eu me imaginava desmaiando na calçada, tendo uma crise sem ninguém pra ajudar ou com medo de pegar covid caso alguém ajudasse; dava meia-volta, seguia pra casa. noutras vezes, eu imaginava as mesmas coisas, mas continuava caminhando, uma passo na frente do outro, o foco no formato da unha do dedão do pé, na tira do meu chinelo, tentando acreditar na materialidade das coisas, no meu corpo físico, nunca nos meus pensamentos. essas costumavam ser tentativas bem-sucedidas: eu conseguia chegar ao mercado, fazer minhas compras e voltar. aqui se criava uma situação-referência que mostrava que eu era capaz.
um tempo depois, comecei a fazer um tratamento odontológico e precisava ir ao bairro do lado toda semana. eram 6 km de distância. anos antes, eu pedalava 30 km, sozinha, com a mochila cheia de marmitas. pensar nisso me deixava triste, parecia que eu tinha perdido a independência que passei anos construindo. meu namorado passou a ir comigo no dentista, cada um na sua bicicleta. meu coração acelerava, eu respirava mal, pensava que ia cair, ser atropelada por um ônibus e ter uma morte horrível. não aconteceu. na quarta semana, eu fui pedalando sozinha pro dentista. uma conquista. era mais uma situação-referência me mostrando que eu conseguia.
um ano se passou e eu continuo lidando diariamente com a ansiedade, mas não tenho mais medo de sair de casa. não levo mais um rivotril pra todo lugar e não fico repassando obsessivamente o nome das pessoas que poderiam estar disponíveis pra me ajudar. mas eu ainda carrego uma garrafa d’água — agora de 500 ml! — toda vez que saio de casa e adicionei mais um item à lista de coisas que diminuem minha ansiedade: batatinha chips. o croc-croc me acalma, o sal aumenta minha pressão, o sabor sempre igual me traz conforto e segurança.
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eu decidi compartilhar minha experiência com agorafobia porque viver com ansiedade é muito desafiador e tem muita gente mal. e, até agora, o que a psiquiatria convencional tem feito é um processo de patologização e medicalização dos transtornos mentais, mas eu não acho que eles são causados por disfunções cerebrais ou algo assim. tomar um antidepressivo pode aliviar os sintomas, mas como resolver o que causa tanta ansiedade? como uma pessoa que toma remédio, não é assim que eu gostaria que estivéssemos tratando o sofrimento emocional.
somos afetados pelo meio no qual estamos inseridos e, já faz um tempo, vivemos sob o caos. da crise estética à sanitária, estamos mergulhados numa crise econômica sob um estado governado pela extrema-direita, comemos veneno todo dia, somos bombardeados de (des)informações e ódio na internet e não temos perspectiva de futuro por conta do colapso do clima. estamos vivendo num mundo em crise sem suporte algum, material ou psicológico. não é à toa que já se fala em eco-ansiedade e solastalgia. não é à toa que o sofrimento emocional das pessoas tenha aumentado depois da pandemia.
quero deixar uma recomendação de conteúdo que gosto muito. o psicólogo luciano lobato produz publicações muito interessantes no instagram e pratica a psicoterapia alternativa radical: alternativa ao modelo biomédico e radical por propor transformações sociais, que buscam mudar a estrutura e não os indivíduos. alguns meses atrás, eu também trabalhei na diagramação de um report sobre saúde mental para o instituto amuta, em colaboração com o luciano lobato, que foi muito rico pra mim. o download é gratuito e vou deixar o link aqui.
finalizo com um trecho do livro “belo mundo, onde você está?”, da escritora irlandesa sally rooney. agradeço por ficar até o final e desculpa incomodar.
luana
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“Bom, eu tenho uma nova teoria. Quer ouvir? Ignore este parágrafo caso não queira. Minha teoria é de que os seres humanos perderam o instinto para a beleza em 1976, quando o plástico se tornou o material mais comum que existe. Dá para perceber a mudança em andamento ao olhar as fotografias de rua de antes e depois de 1976. Sei que temos bons motivos para sermos céticas em relação à nostalgia estética, mas o fato é que, antes dos anos 1970, as pessoas usavam roupas duráveis de lã e algodão, guardavam bebidas em garrafas de vidro, embalavam hortaliças em papel e enchiam as casas de móveis de madeira resistentes. Agora, a maioria dos objetos no nosso ambiente visual é feita de plástico, a substância mais feia da Terra, um material que, quando tingido, não pega a cor, e sim a transpira, de um jeito tão horrível que é inimitável. Uma coisa que os governos poderiam fazer com a minha aprovação (e não são muitas) seria proibir a produção de toda e qualquer forma de plástico que não seja muito necessária para a preservação da vida humana.”
tÔ muito feliz de ter lido isso, muito muito obrigado