“Se o cotidiano lhe parece pobre, não o acuse: acuse-se a si próprio de não ser muito poeta para extrair as suas riquezas.” (Rainer Maria Rilke)
“But I look for our memories, and their clothing, and their eyes.” (Maya Hawke)
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eu nunca entendi as pessoas que não se importam com o que vestem, tipo meu pai. mas eu não quero escrever mais um texto sobre ele, apesar de, talvez, o fazê-lo.
aos quatro anos, eu colocava meus vestidos de maneira que a gola ficasse na altura do quadril e eles se transformassem numa saia longa. eu lembro, vivamente, de uma melissa aranha rosa-transparente com glitter & um mini salto recheado de bolinhas coloridas que acompanhava meus vestidos-saia. aos doze, eu tive uma fase de muito azul. me sentia bem combinando uma camiseta azul-celeste da hello kitty, com uma calça-capri-tactel amarela com listras azul-marinho na lateral, e um converse all star de cano alto da mesma cor da camiseta.
na adolescência, minhas referências mudaram e eu odiava todas as roupas de todas as lojas que a minha cidade natal oferecia. eu passei muitos anos negando-a, jaraguá do sul. queria sair de lá, conhecer novos lugares, novas pessoas, encontrar novas roupas. as roupas, aqui, são uma metáfora pra algo maior que elas. ao mesmo tempo, eu gosto do papel que o vestir tem: é uma forma de comunicação de quem eu sou & uma ferramenta para experimentar ser outro alguém. tem também a coisa da memória. eu gosto de registrar o tempo como uma forma de encapsular memórias. por isso mantenho diários, tiro fotos e acumulo roupas.
agora eu vou falar do meu pai: alguns dias após seu falecimento, o momento de abrir seu guarda-roupa chegou. nos filmes, as pessoas sempre choram nessa hora. na vida real, também, mas chorei só uma vez: quando peguei a pilha de roupas que ele estava usando recentemente. início de primavera, as peças eram regatas e bermudas que não combinavam entre si, eram apenas confortáveis. não as achava bonitas, queria que meu pai vestisse algo melhor para fazê-lo sentir-se bem, mas ele não se importava. no leito, quase nada importa.
quanto à minha mãe, ela é o contrário de uma pessoa acumuladora, ela mantém as memórias dentro da cachola. doamos praticamente tudo. o que restou das roupas de meu pai foi um casaco pra minha irmã, uma camiseta pro meu irmão & um boné verde pra ninguém em especial, além das peças que peguei pra mim: uma calça jeans, um suéter roxo, um blusão velho, uma manga-comprida de gola rolê, uma cueca.
inclusive, tirei meu passaporte recentemente porque vou fazer uma viagem em breve. meu pai não concordaria com essa viagem. pra ele, não fazia o menor sentido ficar longe da família. na foto do passaporte, eu estou usando a blusa de gola rolê. ha — engraçado a presença dele ali, naquele contexto. sinto que vai viajar comigo.
bem, esse texto se chama “o casaco” e eu ainda não falei dele. estou o vestindo nesse momento. gosto de pegá-lo pela parte superior da gola, que vai tocar as laterais do pescoço, e fazer um movimentos de braços que o leva a encaixar-se perfeitamente sobre o meus ombros em segundos. ele é afetivamente liso por dentro, suavemente texturizado por fora e relativamente pesado. não existe etiqueta alguma; a única informação é um bordado na parte interna, onde toca minhas costas, em que está escrito: verbanus, confezioni di lusso.
encontrei ele no bazar da associação de voluntários do hospital são josé, em jaraguá do sul. inicialmente, não o comprei. provei-o algumas vezes, mas o bazar já estava fechando e não era uma peça barata. passei a quarta-feira inteira tendo ideias mirabolantes para acreditar que comprar aquele casaco seria um investimento, não um gasto. pensei em revendê-lo e, com o dinheiro, começar um brechó próprio — algo à la girlboss. arranjei uma sócia (minha mãe), iniciei o processo de naming, deleguei tarefas, quase fiz um plano de negócios e não dormi direito.
na quinta-feira, o dia em que o bazar abria novamente, fui a primeira a chegar. o casaco estava lá: valeu a pena ocupar minha cabeça por aproximadamente 36 horas pensando em tudo que aquele casaco poderia me proporcionar! adicionei uma blusinha de cinco reais na sacola. pagamento aprovado.
só que eu não quero mais me desfazer do casaco. ele passou a representar algo diferente pra mim, uma espécie de aterramento à minha cidade natal; a cidade que passei tantos anos negando & onde não encontrava roupas que gostava. pensar em construir uma acervo com a minha mãe, convidar minha tia para fazer pequenos reparos, garimpar os bazares & brechós de igreja de jaraguá, buscar memórias nas roupas dos outros: me senti tão feliz! tão conectada ao lugar onde nasci, à cidade que meu pai escolheu morar, onde conheceu minha mãe, que também não é de lá, mas para onde decidiu se mudar em 1989.
eu amo roupas. essa frase soa tão tola, mas é tão, sei lá, pura pra mim. & quanto mais o tempo passa, mais eu me apego ao que as roupas significam e ao que elas me proporcionam: sentir na pele as mesmas tramas de algodão que já tocaram a pele de estranhos & de pessoas que significam tudo pra mim; construir uma personagem diferente a cada dia; fazer pessoas questionarem gênero sem expressar uma palavra; criar novos significados para roupas que, querendo ou não, já estão no mundo e passaram por tantos processos antes de chegar até mim. talvez eu romantize demais o que poderia ser apenas traduzido como um acúmulo de roupas usadas, mas o que importa é outra coisa.
até a próxima!
luana